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Nove anos de paz



Em 1349 o continente europeu enfrentava um dos piores inimigos que já confrontou em toda a sua história, uma pandemia violenta e voraz que vitimava populações e devastava cidades, províncias e mesmo países quase que inteiros. A peste negra.

Durante esse período sombrio da existência humana, algo completamente antinatural começou a acontecer em um determinado lugar. Uma pequena cidade do leste europeu; uma comunidade distante dos grandes centros parecia ser completamente imune à ação da doença que assolava e assombrava todo o continente. Os impostos continuavam sendo pagos mensalmente ao monarca da região, algo que mesmo grandes províncias estavam tendo muita dificuldade de fazer. Cidades e vilarejos vizinhos eram abastecidos com mantimentos em grande quantidade enviados pelos moradores daquela simples comunidade, e o mais incrível, não havia nenhum relato de qualquer pessoa infectada pela doença, tampouco nenhuma morte atribuída a ela nos nove anos anteriores. Por este motivo o império e a igreja enviaram um pequeno grupo de quatro autoridades para averiguar o que estava acontecendo com aquele vilarejo e para descobrir por qual motivo a peste não os estava importunando.

Chegando à pequena cidade que ficava isolada e protegida à esquerda por um vasto bosque de árvores coníferas, à direita por um rio caudaloso, e atrás por uma muralha natural criada por algumas colinas; só havia um caminho tanto para entrar quanto para sair daquele lugar e era a estrada por onde eles despachavam mantimentos para outras vilas e cidades do império cuja mais próxima ficava a uma distância de quatro dias de cavalgada. Assim que chegaram no lugar o grupo enviado pelo rei e pela igreja pensou ter descoberto o segredo que mantinha a vila longe da infecção da peste, pois consideraram que a proteção natural criada pelo bosque, pelo rio e pelas colinas dificultava o acesso de pessoas naquela parte da Europa e com menos pessoas circulando, indo e vindo, menor era a possibilidade da doença ser transmitida. também não havia lixo nas ruas, todo o lugar era extremamente bem cuidado. Entretanto, algo mais chamou a atenção dos viajantes.

Eles chegaram naquela pequena cidade bem durante a tarde, uma hora em que normalmente todos deveriam estar tratando de seus afazeres, porém, não havia absolutamente ninguém no lugar, todos os estabelecimentos estavam fechados, todas as casas estavam trancadas e todo o lugar se parecia muito mais com uma cidade fantasma do que com qualquer outra coisa. Os emissários do rei e da igreja vasculharam por toda parte e não encontraram nenhuma pessoa, mas a cidade estava em perfeita ordem, limpa e muito bem mantida, não estava em nada parecida com o caos que reinava no restante das cidades da Europa. O tempo passou e como não queriam viajar de volta durante a noite, os viajantes resolveram ficar no vilarejo até o outro dia, partiriam ao amanhecer, mas não contavam que teriam grandes surpresas durante aquela noite.

Logo que o sol se pôs, os moradores do lugar começaram a sair de suas casas, os estabelecimentos se abriram e o lugar pareceu ganhar uma estranha vida com a chegada das sombras noturnas. Os emissários do rei e da igreja, curiosos para saber o que estava ocorrendo ali, circularam novamente pelo lugar, abismados com a metamorfose que este sofreu, literalmente, do dia para a noite; havia festa, risos, muitos estavam ocupados em afazeres como cuidar do campo e dos animais; agiam como se a luz da lua fosse igual a do sol. Existia uma aura de tranquilidade pairando no ar.

Sem entender o que estava acontecendo o grupo foi novamente até a igreja local, que àquela hora da noite já estava aberta e onde havia muitas pessoas no que parecia ser uma missa. Logo que a estranha missa noturna terminou os emissários do rei foram falar com o clérigo local, precisavam de muitas respostas e cada minuto que passavam ali os deixava mais confusos. Eles não imaginavam, mas logo trocariam sua confusão por terror.

O sacerdote os recebeu juntamente com o representante do lugar, ambos muito solícitos; e o que foi revelado aterrorizou todos os enviados do rei. Quando perguntado, o clérigo local disse que aquele vilarejo estava livre da peste porque a doença só tinha o poder de afetar as pessoas normais, mas que toda a cidade havia feito um pacto de sangue com um vampiro nove anos atrás, de modo que todos os habitantes do lugar haviam se convertido em criaturas da noite, inclusive o próprio sacerdote; assim estavam livres de doenças, da fome, da fadiga e até da própria morte natural. Por esse motivo eles conseguiam trabalhar e produzir muito mais, geravam muito mais recursos, impostos e todo o mantimento que cultivavam era enviado para ajudar outras vilas e cidades que estavam tendo problemas por causa da peste. Tudo o que aqueles cidadãos precisavam para sobreviver era do sangue dos animais, haviam jurado em comum acordo jamais consumir sangue humano, eles não eram monstros e consideravam que ser vampiros era uma bênção concedida para que pudessem passar pelos tempos de provação que se abateram sobre a Europa; entretanto, o primeiro vampiro da cidade, aquele que os tornou seres da noite, os havia advertido para que não gerassem mais vampiros além daqueles que eram moradores do lugar, porque as pessoas do restante do reino, assim como de outras partes da Europa, não entenderiam da mesma forma; e a igreja certamente tentaria intervir de alguma forma violenta para exterminar o que ela, igreja, julgava ser a proliferação das criaturas do inferno.

O primeiro vampiro também os tinha ensinado como viver naquela condição, ou seja, coisas como evitar a luz do sol a todo custo permanecendo durante o dia dentro de suas casas, ter mais cuidado ao manusear o fogo, se alimentar do sangue dos animais sem matá-los nem debilita-los e como usar a força e a velocidade sobre-humana para ser mais produtivos no campo gerando super colheitas, e na construção produzindo melhoria para a cidade mantendo-a muito mais limpa e organizada do que a maioria das demais. Todo esse processo levou cerca de quatro anos e depois disso quando os habitantes da cidade já demonstravam conseguir viver por sua própria conta, aquele primeiro vampiro simplesmente se foi; desapareceu sem deixar vestígios. Alguns moradores diziam que ele ainda vivia nos arredores da cidade, uns falavam que ele estava morando no bosque e outros diziam que ele vivia nas colinas, mas todos eram unanimes em acreditar que aquele vampiro ainda estava por perto acompanhando a evolução daquela pequena cidade que se tornara uma magnifica utopia das sombras. Eles o consideravam como uma espécie de padroeiro do local. Obviamente, tal revelação chocou, e muito, os emissários da igreja.

Abismados com as revelações feitas pelo clérigo e pelo representante do vilarejo, os emissários do rei não sabiam o que pensar, por um lado estavam completamente aterrorizados por ver com seus próprios olhos uma cidade inteira habitada por vampiros, homens e mulheres, crianças e idosos; mas por outro lado, tudo estava na mais perfeita ordem não havia morte, a peste negra tinha sido vencida ali; mesmo trabalhando durante as madrugadas eles produziam muito mais e geravam muito mais recursos para o império do que qualquer outro povoado, e parecia não haver nenhum traço da personalidade vil e profana dos vampiros daquele local, não havia meretrizes na cidade, nem beberrões, nem desordeiros, não havia ladrões, não havia nem mesmo pequenas desavenças entre os moradores. Tudo estava na mais perfeita paz.

Com um misto de entusiasmo e desconfiança os emissários do rei e da igreja não conseguiram chegar em um denominador comum entre eles, suas opiniões divergiam sobre a natureza do que tinham presenciado ali, por esse motivo comunicaram ao padre e ao representante do lugar que iriam partir naquela mesma noite, prometeram que teriam muito cuidado ao voltar para a capital e se certificariam de que tanto o rei quanto o arcebispo fossem bem informados de forma que só contariam que aquela era uma cidade vampírica quando, ou, se, tivessem certeza de que nenhuma providencia ofensiva seria tomada contra os moradores da cidade.  Os emissários receberam mantimento mais do que suficiente para a viagem de volta, assim como dinheiro em espécie para qualquer eventualidade, e um pequeno pote contendo uma espécie de elixir extremamente avermelhado para o caso de serem acometidos pela peste ou por alguma outra doença. Também foram orientados a, se chegassem sãos e salvos em sua cidade, que usassem o elixir para ajudar alguém que precisasse. Depois disso partiram.

Ao se afastarem da pequena cidade avistaram ao longe junto ao bosque o que parecia ser um homem vestido em trajes tão escuros como a noite, o manto cobria-lhe da cabeça aos pés e segurava uma longa espada de duas mãos, todos os viajantes tiveram certeza de que se tratava do tal primeiro vampiro, o "padroeiro" e guardião daquela cidade que se alegrava, prosperava e experimentava nove anos de paz mesmo quando toda a Europa mergulhava em destruição, miséria, tristeza, medo e caos.

Dias depois, chegando à capital os emissários comunicaram parte do que presenciaram, não falaram sobre o fato de se tratar de uma cidade de vampiros, mas o relato foi desacreditado por muitos conselheiros do rei assim como por vários bispos; a igreja e o império resolveram, então, enviar um grupamento maior com cinquenta pessoas, entre soldados e autoridades, para descobrir o que de fato estava acontecendo na cidade, porque tanto o rei quanto o arcebispo pensavam que os moradores daquela cidade isolada  tinham descoberto algum tipo de cura para a peste e a estavam negociando com outros reinos e viajantes de outras terras para obter grandes lucros para pagar os impostos e ainda ficar com muito dinheiro sem o conhecimento do império; obviamente os mesmos emissários também foram novamente enviados junto com a nova guarnição, mas quando chegaram no local algumas semanas depois, ficaram estarrecidos.

Não havia mais nada daquela cidade, a não ser um amontoado de casas destruídas e queimadas, assim como enormes montes de corpos sobrepostos, empalados em estacas, decapitados, retorcidos e dilacerados como se tivessem sido comidos por alguma fera monstruosa; todos estavam mortos e muitos deles mantinham ainda a expressão de agonia nos rostos, até mesmo os animais haviam sido abatidos sem piedade, muito sangue seco manchava o chão por toda parte dividindo a paisagem completamente aterradora com resquícios de fogo em todo lugar.

Na porta da igreja queimada e destruída estava fincada ao solo uma espada feita de um metal escuro e aparentemente desconhecido. Nenhuma das pessoas recém chegadas conseguiu compreender o que estava acontecendo e ficaram ainda mais confusas quando viram alguém envolto em um manto negro saindo pela porta da igreja, mas nada daquilo tinha importância porque nenhum deles sobreviveria àquela noite. 

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