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Lágrimas na lama



Um pântano terrível e úmido. Ele se levantou de dentro de um lago de lama escura, amarado por cipós que prendiam-lhe os braços e o pescoço. Lutou com o pouco de força que possuía para tentar se livrar da vala onde seus pés estavam chafurdando, a lama escorregava para dentro de seus olhos que pareciam nunca ter visto a luz; ardiam intensamente.
Os cipós, como correntes vegetais, eram muito mais resistentes do que pareciam e demoravam bastante para se romper; eram muitos, e ele gritava com todo o ar de seus pulmões. Ao respirar, o oxigênio inflava suas narinas e o odor de todo tipo de matéria orgânica em decomposição entrava misturando-se ao ar do início da noite.
Impondo mais força, os laços vegetais se arrebentaram e ele tentou andar no lamaçal em que estava enterrado até a altura do peito, novamente sentiu uma resistência, seus pés mesmo submersos também estavam presos por alguma coisa muito pesada. Ao perceber isso e tomado por um desespero que nunca antes sentira, ele se arrastou batendo com os braços contra a lama e fazendo força como se estivesse remando com os braços, seus pés arrastavam um peso grande sob a lama.
Foi um esforço quase sobre-humano, mas ele finalmente conseguiu chegar à margem daquele buraco terrível, em seguida tentou várias vezes subir se apoiando por um conjunto de grandes pedras irregulares que ladeavam todo aquele lago lamacento. Obviamente quem o jogara preso daquele modo desumano em um lugar tão hostil, não queria que ele sobrevivesse.
Quando saiu finalmente da poça de águas escuras e fétidas pôde ver que suas pernas estavam presas por correntes de metal muito enferrujadas; correntes estas que por sua vez eram presas a um bloco de concreto tão grande que nenhuma pessoa comum jamais teria força de levantar sozinha.
Ficou surpreso ao ver que tinha conseguido arrastar um bloco daquele tamanho, mas atribuiu a façanha ao fato de ele estar submerso de forma que a gravidade certamente agiria de forma diferente sobre ele. Estava enganado.
Forçando mais uma vez o seu corpo já extenuado pela árdua tarefa de sair da mortal prisão de lodo, tentou, em vão, partir as correntes, pois julgou que era capaz de fazê-lo, mas não foi. Agarrou um grande bloco de rocha pontiaguda e deu com força contra as correntes que o prendiam, repetiu o gesto tantas vezes que seus braços ficaram dormentes e suas mãos feridas; por fim acabou partindo aquelas cadeias e perdendo os sentidos, caído ao pé das árvores cujas raízes adentravam o lamaçal.
“Sangue e morte”
Duas palavras que assombraram o sono lúgubre e sem memória do homem em meio aos restos decompostos das árvores, onde as folhas e galhos tornavam-se um com a lama e toda tropa de insetos e animais rastejantes de que dispõe a natureza num pântano.
Depois de acordar, um pouco mais descansado do esforço, aquela pessoa se pôs sentado e tentou discernir o que exatamente ele estaria fazendo ali; horas se passaram, o homem se levantou, pôs-se a caminhar em meio à mata, pés descalços e doloridos, pernas dormentes, uma forte dor no tórax e extrema dificuldade para respirar; não conseguia concatenar os pensamentos.
Horas depois, caminhando e lutando para lembrar-se quem era, e, o que ou quem o tinha arremessado naquela prisão fétida; chegou a uma clareira na mata de onde podia ouvir claramente vozes ecoando pelo ar, havia pessoas por perto e ele seguiu a direção das vozes.
Um grupo de pessoas estava reunido e ouviam atentamente a um que falava entusiasmado e visivelmente irado.
_Não podemos deixar que isso continue; muitos moradores inocentes de nossa vila já foram levados por aquele ser desprezível._ dizia aquele que parecia ser o líder.
Outros completavam:
_ É uma abominação! _Alguém gritou.
_ Um morto-vivo! _Outro segui.
_ Um maldito Vampiro! _ Outro completou.
O líder resolveu intervir mais uma vez:
_ Se ao menos um daqueles que ele arrastou para dentro do pântano tivesse sobrevivido, então poderíamos saber onde o monstro se esconde e como ele pode ser detido; mais não há esperança para suas vítimas.
A multidão esbravejou furiosa.
_Temos que fazer algo para parar essa matança.
Um ancião ergueu a voz em meio à multidão:
_ Aquilo não é mais humano, deve ser fruto de bruxaria.
O homem que estava escondido por entre os arbustos ainda tentava se lembrar o que teria acontecido com ele para que despertasse dentro daquele charco de lodo, mas logo concluiu que devia ter sido atacado pela tal criatura da qual os habitantes ali reunidos estavam falando; afinal por qual outro motivo estaria acorrentado e preso aos cipós?
De repente, um fluxo ininterrupto de memória se desenrolou dentro da mente dele, lembrou-se, das pessoas atacadas pela criatura, lembrou também que conhecia muitos deles, homens, mulheres e crianças; lembrou que o monstro atacava pessoas em quem acreditava haver pureza, nobreza, bravura ou quaisquer características ou virtudes enobrecedoras porque queria se alimentar delas e ser como eles.
A multidão gritou mais uma vez e seu líder recomeçava o discurso:
_ Aquela criatura que vem até nossas casas durante as noites e ataca nossas famílias deve ser destruído a qualquer custo._ disse.
As palavras do líder arrancaram um ruído assustado da maior parte das pessoas presentes e logo um murmúrio se levantou no meio deles.
_ Se nos unirmos contra esse mal, poderemos pôr um fim nele; usaremos paus e pedras se for necessário. Faremos fogueiras, lanças e estacas_ incitou o líder
Alguns rebateram:
_ Ele é uma afronta a Deus.
Outros protestaram:
_Dizem que ele comanda as feras da noite e as bestas do inferno. Não podemos vencê-lo sem a ajuda da igreja.
Aquele que escutava a tudo detrás das árvores, ainda sentia o corpo dolorido e lembrava-se que já havia se engalfinhado com algo monstruoso e finalmente se lembrou que vivia realmente junto com aquelas pessoas, lembrava até mesmo dos nomes de grande parte dos que estavam ali, mas em algum momento foi preso pela criatura, torturado abominavelmente e aprisionado no pântano.
O líder retomou o discurso: 
_Existe um grupo de homens aqui dispostos a expor suas vidas ao perigo dentro do pântano, porém, preciso de alguém que os conduza pelas veredas obscuras desse lugar devorador de gente até o local onde o Vampiro vive.
Logo todos os homens se calaram. Quem lideraria uma busca suicida para chegar a um lugar por onde nenhum deles jamais havia andado e combater uma criatura nefasta feita de pura maldade?
_ O pântano é terra morta e amaldiçoada._ falou o líder, e completou._ Não posso pisar lá, pois que sou o único e legítimo representante da igreja em vosso meio, um homem puro; se eu cair, nosso inimigo terá alcançado seu objetivo, e vocês estarão indefesos.
As pessoas temiam por não conseguir alguém que os liderasse e a noite se tornava mais perigosa para todos a cada segundo que passava.
O homem ponderou tudo o que ouviu e percebeu que já havia passado pelo pior, conseguira fugir da prisão de lama e atravessar o pântano, conhecia o caminho e poderia facilmente liderar os corajosos na empreitada em busca da criatura profana.
Então finalmente se revelou aos demais, saiu da mata ainda meio cambaleante pelo extremo esforço que fizera até ali e com movimentos pela metade, se apoiando em algumas árvores...
...Os gritos da multidão alcançaram uma violência tão grande que lhe feriam os ouvidos e um tumulto generalizado se formou tão rápido quanto foi possível.
_ É ele! _ Gritaram alguns
_ Ele voltou! Está entre nós! _ diziam outros aos berros.
_ Afaste-se criatura do mal; deixe-nos em paz; volte para as sombras._ Falavam alguns enquanto, em vão, faziam o sinal da cruz com os dedos.
Ele não entendeu o motivo de tudo aquilo até que ouviu o clérigo líder das pessoas dizendo:
_ Vejam! Ele possui as marcas do mal e as palavras místicas em seu corpo.
Só naquele momento ele percebeu que estava nu, e ao olhar para seu próprio corpo viu que cada um de seus membros estava costurado de forma tosca e mau feita, como se ele mesmo fosse feito de retalhos de outras pessoas; além disso, duas palavras marcadas a ferro e fogo em seu tórax desnudo, morte e sangue. O nervosismo foi tão grande ao perceber que ele era a criatura de quem todos falavam, que todo o seu corpo tremeu e ele libertou o mais agonizante grito já ouvido por aqueles homens e mulheres. Todos puderam ver seus olhos inflamados emanando o brilho dos animais noturnos e seus longos dentes vampíricos.
As pessoas arremessavam pedras e paus sobre ele, outros pegaram em espadas mal forjadas, lanças feitas com simples cabos sem ponta e estacas mal apontadas; aquelas pessoas não eram guerreiros, eram agricultores e fazendeiros desesperados, mesmo assim e o atacaram. O Vampiro tentou, num primeiro momento, não fazer nada contra aquelas pessoas, porém, estava sendo tão brutalmente surrado que não conseguiu se conter.
O clérigo foi o único que conseguiu escapar, pois covardemente fugiu no momento em que viu o monstro atacar a todos com uma fúria incontrolável. Nenhuma das pessoas que ali estavam voltou para suas casas.
Confusa e aterrorizada, a criatura, retornou para o mesmo lago de lama e lodo de onde havia saído, em prantos,  pelo que tinha acabado de fazer; lá, mergulhou suas lágrimas e se prendeu voluntariamente entre os grossos cipós na esperança de nunca mais sair. Porém, o torpor apagaria sua memória novamente como já havia feito diversas vezes antes e em breve ele retornaria a superfície. 

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