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Matéria escura



A mulher envolta numa toga preta estava deitada sobre um altar em formato retangular; ela tinha sido presa com correntes de ferro frio pelas mãos e pelos pés; ao redor do altar que ficava no centro de um grande salão sombrio iluminado por milhares de velas estava um grupo de homens cobertos por túnicas negras cujos capuzes cobriam suas cabeças de modo que as sombras escondiam seus rostos.
Todos os presentes naquele local, exceto a mulher, eram bebedores de sangue humano e faziam parte de uma irmandade sinistra de vampiros cujo objetivo era convocar uma das mais infernais forças do universo com a finalidade de tentar estudá-la e controlá-la para seu uso particular tornando-os assim a irmandade mais forte andando sobre a face da terra. Aquele grupo havia pesquisado durante décadas uma forma de tentar concentrar alguns elementos capazes de trazer até eles a criatura que sabiam que existia, mas nunca chegaram perto o suficiente para ver.
As velas queimavam quase que uniformemente, a luz e o calor produzidos eram parte do ritual; cada um dos homens presentes ali começou murmurando os versos que eles acreditavam possuir o poder de chamar a atenção da parte escura do universo, algo conhecido entre eles e outros estudiosos da magia das sombras como “matéria escura”, não eram versos iguais, cada qual possuía a responsabilidade de recitar um verso místico particular; havia quase cem membros naquela sala e para que o portal se abrisse era necessário que cada um deles declamasse seu verso específico ao mesmo tempo que os outros; uma falha na sincronia poria tudo a perder, e em seguida, todos juntos, entoassem um cântico capaz de passar pela barreira física da realidade até um território conhecido como umbra, que nada mais é, do que uma parte do universo longínquo que, na verdade está mais perto da terra por causa de distorções e dilatações tempo-espaciais que não podem ser percebidas naturalmente pelos seres humanos através da tecnologia atual.
O intuito do ritual era fazer com que a voz dos membros da irmandade penetrasse aquela espécie de buraco negro invisível e chamasse a atenção da criatura que, segundo eles, vive lá dentro em algum lugar desde o início dos tempos; porém havia alguns pontos falhos em toda a teoria daquela irmandade sombria, primeiro, o que eles achavam ser uma criatura na verdade era uma antiga força decaída universal da criação e, segundo, como tal, esta força ancestral não pode ser dominada por absolutamente nada nem ninguém que exista na terra. Eles estavam muito perto de descobrir tudo isso; da pior maneira possível.

A mulher pareceu despertar de um transe, na verdade havia sido drogada e o efeito das drogas tinha acabado, algo que não importava porque estava devidamente presa. Ela estava ali apenas para servir de alimento para a “criatura”, e logo que percebeu que sua vida corria sério risco começou a gritar aterrorizada, pedindo por ajuda, infelizmente ninguém que pudesse salvá-la jamais escutaria seus pedidos e todo os que estavam presente desejavam vê-la ser consumida. No momento que a mulher começou a gritar e se debater contra as correntes, os vampiros ergueram suas mãos e começaram a entoar o cântico macabro que abriria o portal.
O cântico e os gritos se misturavam no ar com o calor do ambiente; a luz tremeluzente das milhares de velas espalhadas por toda parte criavam uma dança de sombras nas paredes; sombras estas que pareciam estar reagindo segundo a voz de todos.
Os punhos da mulher ardiam e estavam esfolados, assim como seus tornozelos; um pouco de sangue já podia ser visto manchando a pele dela no lugar onde o metal tinha atrito com a carne. Em certa altura o tom na voz da vítima acorrentada atingiu um sutil timbre de agonia que misturado a todo o resto desencadeou a reação que a irmandade tanto esperava. Foi como a última nota sônica que atinge uma taça de cristal, fazendo-a se estilhaçar por completo, mas o que se partiu não foi um simples cálice, mas sim a realidade dentro daquele salão obscuro.
As chamas das velas realizaram uma dança fora do comum e de repente diminuíram de intensidade de tal forma que todos os membros da irmandade perceberam que algo diferente tinha começado a acontecer, as sombras projetadas nas paredes estava completamente estática, como se não fossem mais dependentes das chamas para existir; elas também já não se pareciam mais com o que deveriam ser, na verdade, quando alguns dos membros da irmandade olharam para as paredes viram sombras de uma multidão de pessoas muito maior do que o número de indivíduos que estavam no salão; foi como se um exército de fantasmas do submundo tivesse se materializado ali.
De repente o som de vozes começou a ecoar por toda parte vindo das paredes e aparentemente brotando do próprio ar, eram vozes misturadas, masculinas, femininas e infantis, porém, não era possível distinguir o que estavam dizendo, não era um idioma conhecido, na verdade, não era nem mesmo linguagem mortal. O pior estava para acontecer.
Todos os membros da irmandade pararam de entoar seu cântico no mesmo momento em que a mulher parou de gritar, porém, aquilo não aconteceu de maneira natural, o fato é que todo o som daquele salão simplesmente desapareceu, mesmo esforçando-se para falar, ninguém conseguiu, foi como se o vácuo do espaço exterior se fizesse presente naquele local, e em parte, foi o que aconteceu. Tomados por espanto, todos ficaram quietos sem saber o que pensar ou fazer, havia um peso estranho pairando no ar, a própria gravidade parecia ter sido alterada.
Numa velocidade maior do que tudo o que aqueles homens já tinham visto na vida, as luzes das velas se apagaram definitivamente; exceto duas que haviam sido colocadas próximas do altar do sacrifício onde a vítima confusa e desesperada estava, em silêncio, tentado fugir, sem sucesso. Havia uma excitação no coração dos membros da irmandade e aquilo aumentou quando puderam ver que além da mulher, por detrás do altar uma sombra enorme se ergueu do chão como se estivesse saindo diretamente do inferno; não havia forma que pudesse ser identificada, em princípio, mas depois alguns dos que estava presente puderam ver algo como enormes tentáculos e asas feitas de sombra.
A mulher gritou novamente o mais alto que pode ao ver aquela aparição hedionda tão próxima de si, ela sentia um grande ardor tanto nos pulmões quanto na garganta, mas nenhum som se fez presente. A monstruosidade pairava no ar e flutuou sobre a vítima acorrentada fazendo com que ela desaparecesse em seu interior, embora não houvesse qualquer som no ambiente, todos os que estavam ali sabiam que a mulher estava sendo dolorosamente consumida pela criatura, eles podiam sentir a vibração da dor que ela sentia reverberando no ar, mas na verdade, eles já haviam sido, todos, pegos pela sombra. Havia tentáculos de sombras brotando das paredes e do chão, estes tentáculos tinham penetrado a base da nuca de todos e agora remexia na mente de suas vítimas; alguns poucos perceberam o que estava realmente acontecendo, tentaram correr, gritar, lutar ou fazer qualquer coisa para se soltar da influência da sombra, mas nenhuma força na terra poderia livrá-los do destino que os aguardava. A abominação não era exatamente uma simples sombra, era algo palpável aparentemente criado por algum tipo de matéria escura, muito provavelmente do mesmo tipo que existe nos lugares mais distantes do universo e que são a anos estudadas com grande fascinação por milhares de cientistas ao redor do globo. Quem poderia imaginar que parte da matéria escura do cosmos estivesse dentro do planeta terra, consciente, devorando pessoas e outros seres há séculos sem ser percebida. 
Um dos últimos membros da irmandade a ser devorado, estava a beira da loucura produzida pela dor lancinante causada pelos tentáculos de matéria escura perfurando toda a sua pele, quando, caído e já sem qualquer força, olhou e viu uma espécie de rosto deformado brotando da grande sombra, os olhos da criatura varreram o lugar percebendo que não havia mais ninguém ali para ser consumido e depois se recolheram novamente para dentro da grande espiral de sombras, tentáculos e asas. Foi a visão final daquele vampiro e depois também foi devorado.

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