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O aroma da noite e o gosto do sangue



Julian possuía um ritual noturno que fazia questão de cumprir sempre que possível, embora estivesse cada vez mais difícil. Ao menos uma vez no ano ele gostava de ir a algum lugar onde pudesse contemplar o mar e o céu; costumava ficar de pé durante algumas horas, completamente imóvel, apenas relembrando como era a sua vida antes de se tornar o monstro que era atualmente. Seu olhar se perdia no horizonte onde o mar negro se encontrava com o céu noturno e sua mente permanecia absorta nas lembranças que sempre culminavam com uma grande explosão de ira em algum momento, por isso estava ficando cada vez mais difícil dar vazão a seus desejos sombrios, pois ele sempre precisava encontrar uma forma de disfarçar sua ação de modo que não deixasse rastros visíveis principalmente para os caçadores que reviravam as noites trás de encontrar algum noctívago que pudessem destruir. Entretanto, Julian precisava sair para ver o mundo de vez em quando, passava muito tempo enclausurado, e chegava um momento que não conseguia mais suportar.
Naquela noite em especial ele parou em uma espécie de píer de onde podia ver ao longe a parte da orla que havia sido revitalizada recentemente; havia muitas luzes, música, diversão e inúmeras pessoas andando de um lado para outro, assim como também, vários bares repleto de clientes sentados tanto do lado de dentro quanto de fora, em mesas redondas rodeadas por cadeiras especialmente colocadas ali para tornar a interação entre cada grupo de pessoas melhor e mais fluida.
Julian estava bem distante de toda aquela alegria, parado nas sombras próximo de um pedaço quebrado de um antigo deck de madeira corroído pelo tempo e pela maresia, mas mesmo a distância ele conseguia ver claramente tudo o que as pessoas faziam do outro lado, seus olhos naturalmente e perfeitamente adaptados para ver através das sombras conseguiam vencer facilmente toda a distancia que separava ele que estava parado no lado antigo da orla, das pessoas que aproveitavam a vida no lado renovado, certamente havia quase quinhentos metros de distância entre eles.
Do lado de lá ninguém jamais poderia imaginar que estavam sendo observados desde que o sol se foi e a escuridão passou a governar na cidade; muitos bebiam, alguns fumavam, havia risos, namoro e todo tipo de interação que Julian apenas lembrava. Já tinha sido como eles, já tinha caminhado durante os dias e sentido o ardor do toque do sol em sua pele, lembrava-se de como era beber uma cerveja gelada, de como era comer uma comida quente e bem preparada e principalmente lembrava do prazer de sentir os lábios de uma mulher tocando os seus, mas tudo aquilo era passado, já não podia fazer nada daquilo; o sol agora era seu maior inimigo, a mais leve exposição aos raios ou a simples luminosidade do astro rei  lhe causava dor extrema e cegueira instantânea. Seu organismo não era mais capaz de sustentar nenhuma bebida ou comida, e se tentasse ingerir algo acabaria sentindo dores internas e convulsões durante horas; o único alimento que ainda conseguia ingerir era o sangue quente. Além disso, ele também não possuía sensações físicas, ou seja, se levasse um tiro ou fosse esfaqueado, não sentiria nenhuma dor, e durante muito tempo aquilo parecia uma dadiva, porém ficou claro que não era, porque de igual modo ele não era capaz de sentir prazer físico fosse os beijos de uma mulher sobre sua pele, fossem as sensação efêmeras provocada pelo clímax de uma relação. Julian tinha se tornado tão frio quanto uma pessoa morta, com uma única diferença de que ele ainda estava andando pelas noites e drenando pessoas sem sentir qualquer culpa por fazer isso.
Parado ali nas sombras envolto em trajes escuros ele parecia um fantasma abissal, um espectro de outras épocas, mas não era isso; embora fosse portador da mesma antiga maldição que tornou seres como Vlad Dracul famoso em todo mundo. Ele não era uma sombra do passado, pelo contrário, era um terror noturno que se adapta às novas circunstâncias, aprende, evolui e se reinventa muito mais rápido do que qualquer outra criatura da criação; Julian sabia muito bem quem era, ele era o terror e a fúria, um legítimo filho da noite, arauto do mal, o portador da morte; e como de costume era hora de completar seu ritual.
Sempre começava parado apenas contemplando o mar e o céu noturno, e gradativamente deixava suas memórias despertarem seu desejo; no princípio tudo o que ele buscava para se inspirar era sentir o doce cheiro do ar noturno, não havia nada igual no mundo. Cada noite carregava uma miríade de odores e perfumes, mas nada se comparava com o próprio cheiro da noite, doce e suave que parecia enchê-lo com forças obscuras que nem ele mesmo sabia de onde vinham. O cheiro da noite era o início do seu ritual pessoal.
Ele despertou de seu transe inebriado pelo aroma da noite, como se a própria Nix tivesse derramado seu perfume em toda parte. Aquele era o sinal que aguçava os sentidos de Julian e o levava a um estado de frenesi que só podia ser saciado com uma coisa. Sangue. Ele começou a andar na direção da parte iluminada da orla, gradativamente começou a apertar o passo e passou a correr, correu cada vez mais rápido, muito mais rápido do que uma pessoa comum poderia, em seguida saltou deixando suas roupas escuras esvoaçarem no ar quando tocadas pelo vendo, saltou mais uma vez e mais outra. Seus dentes longos, suas unhas agora eram garras e seus olhos completamente inumanos denunciavam sua natureza.
As pessoas continuavam sua festividade quando, de repente, Julian simplesmente caiu sobre eles como uma tempestade obscura que varreu a maioria dos presentes antes mesmo que se dessem conta do que estava acontecendo; os risos se transformaram em gritos, a alegria se converteu em desespero; ele era como uma sombra dançando de forma macabra no meio dos vivos, tão rápido que quase não era possível vê-lo ceifando as vidas de todos os que encontrava em sua frente, rasgando e bebendo a jugular de alguns ou simplesmente eliminando outros.
Gritos, horror, choro, desespero e morte. O ritual de Julian começava com o aroma da noite, mas sempre terminava com o gosto do sangue; e naquela noite, mais uma vez, estava concluído. Depois de estar saciado, ele desapareceu como que por bruxaria sem deixar vestígios, como somente uma criatura da noite faria.

Até o próximo ano.

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