Pular para o conteúdo principal

A cria de Hades



405 A.c
Surrado...
...Acorrentado a uma haste de madeira fincada ao chão...
...Perdendo rapidamente os sentidos...
Debilitado pela fraqueza, pela fome e pelo frio...
Humilhado pela derrota mais retumbante que suas tropas jamais provaram, e...
Desesperado por vingança.
Só há dois destinos prováveis para um derrotado em batalha, uma vida de escravidão ou a morte. Um homem, um guerreiro, um herói como o prisioneiro em questão, acorrentado naquela haste, não desejava nem um nem outro, seu coração ardia em fúria, seu orgulho ferido pela derrota doía muito mais do que seu corpo triturado, com ossos quebrados, pulmões perfurados e carne dilacerada. Seu corpo vertia sangue, que no chão onde ele estava deitado sem forças para se pôr de pé, respirando em curtos haustos, se misturava à terra negra do solo. Esparta sob o comando do impetuoso e tirânico Lisandro atacava e destruía tudo o que era relativo aos atenienses e a seu exército.
Perseguia e aniquilava cada soldado, cada homem que ousasse ficar em seu caminho; e o prisioneiro ali aguardava o desfecho de sua vida de combates como um porco aguarda a hora do abate.
Todo o corpo do prisioneiro estava esfacelado pela brutalidade com a qual soldados espartanos o haviam emboscado; vários espartanos, um ateniense, a morte era certa.
Deitado e aguardando que sua vida se esvaísse pouco a pouco, mas com um ódio tão grande e destrutivo dentro de seu coração que seria capaz de se pudesse, levantar e aniquilar a todos os soldados que dormiam naquele acampamento; ele o faria.
Atenas, a cidade da sabedoria, berço da democracia e do pensamento livre; não podia crer que Esparta vencesse a guerra. Diziam que Lisandro possuía duas alianças que o estavam levando à vitória; a primeira com Ciro o moço, irmão de Artaxerxes o imperador da Pérsia e a segunda, muito mais abominável, com o próprio Ares, deus da guerra.
A lucidez do prisioneiro era como um fino cordão em tempo de se partir, e mesmo caminhando na estreita beirada do desfiladeiro do vale das sombras o soldado ainda conseguiu pensar nas Moiras prestes a cortarem o fio de sua vida.
Balbuciando ele disse:



_Não vou morrer aqui.
O ódio dentro de seu peito já tinha feito contato com algo tão medonho que o faria se arrepender amargamente pelo resto de seus de dias na terra. E sem perceber ele pronunciou as palavras:
_Eu Apelo! Hades...
Sussurrou mais alguma coisa que não conseguiu entender, sua consciência o tinha abandonado, seus sentidos se foram e ele estava entregue à morte finalmente.
Mas não morreu.
Uma tempestade de imagens como que refletidas em águas sombrias, dominaram a mente do prisioneiro.
As batalhas que travou...
As pessoas que matou estavam todas em algum lugar, do outro lado de um rio, rostos distorcidos por dor e agonia o observando como se uma punição muito mais severa fosse recair sobre ele.
Palavras ecoaram nas sombras.
_Minha alma... Sede de sangue...
_...Perpetuamente...nunca mais...
Ele reconhecia a sua própria voz e se ouvia falando, mas não havia mais ninguém lá além dos condenados que olhavam atentamente.
As palavras e imagens continuavam brotando, mas como aquilo era possível? Não tinha mais nenhuma força em seu corpo, seus órgãos não funcionavam mais, não havia mais sangue para verter e sua força de vontade tinha se dobrado ao abraço gelado da inexistência.
Porém, ele não morreu.
Ouviu sua voz novamente dizendo:
_... E assim será.
E outra voz respondeu do meio das sombras:
_ Então, que assim seja.
Sentiu um forte cheiro de fumaça, fuligem, enxofre; um frio mortal se apoderou de seu corpo. Ouviu várias vozes que lamentavam por ele, não entendia o que diziam, mas sabia que lamentavam por ele, com muito pranto e lamúria.
Abriu os olhos incomodado pelo sol que já estava no ponto mais alto do céu, sentia o corpo todo formigar; ainda deitado olhou em redor como pôde; o acampamento do qual era prisioneiro não existia mais, tudo tinha sido consumido por chamas, e quanto aos guardas e soldados inimigos só restava uma montanha de corpos pálidos.
O prisioneiro já não estava mais acorrentado e incrivelmente ficou de pé, não sentia dores; girou sobre os calcanhares, não avistou nenhuma alma vivente e nesse momento levou sua própria mão ao coração, percebeu que não batia.
Estava morto, mas estava vivo. Além disso, havia muito sangue em suas mãos e em sua boca, como se ele mesmo tivesse matado a todos ao redor e bebido o sangue diretamente de seus corpos.
Hades tinha respondido ao chamado. O homem agora era um monstro; caiu de joelhos e com um misto de ódio, repulsa e tantos outros sentimentos, deixou sair um grito, não, um urro tão animalesco que não podia ter saído de uma alma mortal.
Alcançara a imortalidade. Mas a que preço?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Noite vermelha

Os morcegos estavam por todo lado, um dos caçadores tombou tão rápido que os outros nem perceberam o que estava acontecendo. Um deles tentou atirar para várias direções, mas logo viu que não acertaria ninguém. Esse caçador estava perto do carro e tentou correr para buscar abrigo dentro dele, era um SUV médio que usavam para caçar as criaturas da noite, mas não teve tempo de chegar no veículo, foi abatido por um vulto escuro que o agarrou, quebrou seus braços e o atacou bem no pescoço. Quando o corpo do segundo caçador tombou os dois que restaram finalmente compreenderam o que estava acontecendo. Eles tinha se reunido ali como faziam uma noite todos os meses para se agrupar e sair pela madrugada caçando criaturas que vivem entre os vivos sem ser vivos; ou seja, eles caçavam vampiros e perceberam que naquele momento algum vampiro os havia encontrado para se vingar. _O que esta acontecendo aqui? Onde estão os outros? _ perguntou um dos caçadores que ainda não tinha percebido a

Escravos da morte

Mais um carnaval acabou, esta é, sem dúvida, a melhor semana para todos os noctívagos como eu; são noites em que podemos sair pelas ruas sem ter a menor preocupação em manter nossa existência em segredo, porque as pessoas comuns estão tão bêbadas e inebriadas com todo o maravilhoso caos criado por sua alegria desesperada que nem mesmo se dão conta de que são apenas uma multidão de vítimas esperando para serem encontradas e abatidas. Eu me chamo Jezhrabel, neste momento estou em minha casa, sentada sobre minha cama e alimentando meus animaizinhos com meu próprio sangue retirado de um longo corte superficial que faço em minha garganta; depois deixo que meus bichinhos, dois gatos que estão comigo desde o início, bebam um pouco, faço isso uma vez ao mês e eles se tornaram criaturas tão longevas quanto eu. A verdade é que prefiro meus monstrinhos às pessoas e é por este motivo que vou contar como foram meus dias de carnaval na cidade maravilhosa. Moro no Rio de Janeiro desd

Baile de carnaval

Rosana, Mirela e Andréa planejaram a viagem de férias perfeitas durante dois anos, juntaram dinheiro e finalmente conseguiram concretizar o sonho de passar o carnaval na Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro parecia estar completamente envolto em uma aura de festa desde o aeroporto. Elas chegaram à cidade vindas de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e logo no caminho para o hotel em Copacabana puderam presenciar vários blocos de rua desde o aterro do flamengo, passando pela enseada de botafogo e mesmo na Avenida Atlântica, que é a principal rua do bairro mais famoso da cidade. Logo que chegaram ao hotel deixaram suas malas no quarto e passaram a tarde na praia, aproveitando o sol do verão carioca para ganhar um tom de pele mais bronzeado, beberam algumas cervejas, almoçaram, caminharam pelo calçadão da orla até próximo ao Forte de Copacabana, e tomaram banho de mar, é claro. Durante o tempo em que estiveram na areia, elas presenciaram vários blocos extremamente animados pa