Quando o
passageiro entrou no táxi, Doni não percebeu nada de anormal. Estava
conversando com um colega ao telefone, sentado dentro do carro, com os vidros
abaixados e a porta do motorista aberta.
_Boa noite._
Cumprimentou o taxista assim que o passageiro entrou.
O homem
sentou rapidamente e fechando a porta disse:
_ Boa
noite._ Tinha uma voz grossa e um tanto rouca com o sotaque hispânico carregado.
Donizete
Martins, quarenta e cinco anos, treze de praça, dirigindo táxi. Passou a
trabalhar à noite porque o trânsito era menos enlouquecedor do que durante o
dia e também porque depois de certa hora podia cobrar um pouco mais caro, além
disso, sempre conseguia boas gorjetas; nas noites as pessoas eram mais
"mão-aberta".
O passageiro
trajava roupas escuras, provavelmente azul marinho ou preto; camisa social e
paletó sem gravata; Donizete não conseguiu ver se usava calças jeans ou social.
Porém, o mais estranho era que o passageiro usava óculos escuros, mesmo à noite.
_ Rua
Jean-Babtiste Debret, por favor._ disse o passageiro enquanto retirava os
óculos de sol.
Donizete se
endireitou no banco do motorista e pôs o cinto de segurança; bateu a porta e
acionou o taxímetro.
_ É pra já.
Ligou o
carro, o ar-condicionado, fechou os vidros e comunicou pelo rádio que havia
pego um passageiro e estava saindo para uma corrida.
Como todo
bom taxista, Doni era uma pessoa muito boa de conversa e sempre procurava puxar
papo com seus passageiros para tornar a viagem um pouco mais descontraída.
Gostava de conversar sobre praticamente tudo, política, economia, futebol,
atualidades, religiões; qualquer coisa. E era muito comum que as pessoas
falassem sobre todos esses temas nas viagens; o taxista sempre tinha uma
opinião ou uma posição firme e bem definida sobre tudo, mas sempre respeitava e
deixava seus passageiros confortáveis para falarem sem restrição; como bom
ouvinte, Doni nunca criticava quem quer que fosse.
Ele começou:
_ O senhor é
estrangeiro?_ desconfiou que o homem não fosse Brasileiro pelo sotaque.
O carro saiu
pela rua, tranquilamente.
O passageiro
colocou os óculos escuros num bolso interno do paletó. Era um homem caucasiano,
alto, magro, louro e com olhos escuros; parecia com um norueguês que certa vez
havia feito uma corrida no táxi desde o aeroporto até Copacabana; ele tinha
aquelas marcas escuras abaixo dos olhos e a face dura e levemente ossuda, com
as marcas de expressão bem definidas e profundas tanto na testa quanto próximas
do nariz e boca. Donizete olhou pelo retrovisor interno e percebeu que o
passageiro estava olhando para fora do veículo pelo vidro obscurecido e fechado
quando respondeu.
_ Sim, sou.
Donizete
insistiu:
_ Noruega? _
Perguntou mesmo sabendo que o homem não era norueguês; tinha certeza disso porque
ouviu o sotaque carregado, talvez, de um espanhol.
Geralmente
turistas só se utilizavam do idioma espanhol quando queriam passar a sensação
de que sabiam falar português, do contrário, sempre usavam o inglês como forma
de comunicação; salvo aqueles que tinham a língua hispânica como língua mãe.
Donizete já
tinha carregado em seu táxi vários turistas suecos, ingleses, americanos,
franceses, noruegueses e muitos espanhóis e sul-americanos em geral;
Argentinos, Uruguaios, Peruanos, Chilenos etc... O Rio de Janeiro estava cada
dia mais parecido com uma enorme aldeia global; uma espécie de Babel cultural.
_ Não._
Respondeu ainda olhando pelo vidro provavelmente para o movimento de pessoas e
carros ao redor. O movimento noturno do Rio de Janeiro é atualmente um dos mais
pulsantes de todo o mundo e com o intenso número de turistas chegando a cada
dia a tendência é aumentar ainda mais.
Obviamente o
passageiro era uma pessoa reservada e de poucas palavras.
_
Americano?_ insistiu Donizete. Apenas para obrigar o passageiro a falar um
pouco.
O motorista
gostava de conversar principalmente porque conseguia conhecer as pessoas dessa
forma. No caso do tal norueguês, o visitante havia conversado tanto que tinha
espantado Donizete; o homem falava o tempo todo mesmo sem saber falar o idioma
nacional, misturava o inglês, às vezes o espanhol e um pouquinho, apenas, de
português. Donizete por outro lado também não dominava nenhuma daquelas línguas
exceto a sua, é claro, mas arranhava um pouquinho de inglês e espanhol, apenas
o suficiente para manter sua relação comercial. No caso, Donizete passou a
concordar fazendo sinais de afirmativo com a cabeça em certa hora do trajeto
até o ponto onde deixou o turista da Noruega; um hotel.
_ Sou
espanhol._ disse o passageiro.
“Na mosca”_
Pensou Donizete com orgulho de si mesmo. Investiu mais uma vez.
_ De que
parte da Espanha? Tenho um cunhado que está morando em Madri.
O passageiro
suspirou e deixou de olhar pela janela.
_
Valhadolid. Mas faz um ano que moro aqui.
Donizete
balançou a cabeça; não tinha nenhuma informação sobre esse lugar; Valhadolid.
Da Espanha ele só conhecia Madri porque havia viajado com a esposa e filhos, um
ano antes, para lá em férias programadas durante cinco anos de economia, mas
valeu cada centavo.
_ Não
conheço._ disse o taxista.
O passageiro
não continuou a falar.
Percebendo
isso, Donizete perguntou:
_ E está
gostando do Rio?
A resposta
foi tão simples quanto as outras.
_ Sim.
Estavam se
aproximando do destino e o passageiro se endireitou no banco. Donizete olhou
novamente para ele pelo retrovisor interno e viu quando ele tirou do bolso os
óculos que estava usando inicialmente, mas não colocou sobre os olhos.
_Falta
pouco. A rua Debret é logo no final daquela avenida, à esquerda.
Donizete sabia
exatamente que rua era aquela, quando trabalhava durante o dia costumava passar
por lá para cortar caminho e evitar o trânsito, mas durante a noite não gostava
muito de fazer esse trajeto. Tratava-se de uma rua repleta de casarões grandes,
antigos, abandonados e também muito mal-cuidados, além do que, de uns tempos
para cá havia se tornado um lugar ermo. Com muitos moradores de rua transitando
pelas redondezas e pouca iluminação.
Estava
fazendo uma curva acentuada para a esquerda; buzinou rapidamente para um outro
táxi parado no sinal vermelho que acabara de abrir. No final da via estaria no
ponto de destino, o cruzamento da principal com a Jean-baptiste.
Donizete
pensou em alertar o visitante que se tratava de um lugar complicado, sobretudo,
durante as noites, mas logo desistiu; afinal de contas, se o homem queria ir
para lá é porque sabia como o lugar era. Donizete controlou a vontade de falar
mais alguma coisa, mas permaneceu com a curiosidade; afinal, o que um residente
estrangeiro ia fazer numa localidade tão esquisita como aquela; não existia
nenhum bar, nenhuma casa noturna, nem mesmo prostíbulos. O Rio de Janeiro tinha
uma miríade de outros lugares maravilhosos para se visitar à noite. Nada
justificava uma visita noturna àquela área.
Ficou calado.
_ Vou me
encontrar com alguns amigos._ Revelou o passageiro.
Ora!
Donizete não tinha dito nada, será que tinha pensado em voz alta para que o
passageiro ouvisse e respondesse; ficou confuso. Estava chegando à esquina da
rua em questão, o trânsito um pouco mais movimentado havia ficado na avenida, e
como a rua na qual se encontrava era uma via secundária, logo, estava muito
menos movimentada.
Na esquina
estavam paradas duas pessoas, aparentemente um homem, uma mulher e mais ninguém
em mais de cem metros para qualquer lado. Eles vestiam-se também com roupas
escuras e ambos usavam óculos escuros, mas estavam num lugar onde até mesmo a
pouca iluminação dos postes não os alcançavam.
_ São eles._
disse o passageiro. _ Pode me deixar aqui mesmo.
Donizete
encostou o táxi junto ao meio fio torcendo para o homem sair logo do veículo.
_Pois não.
O passageiro
se inclinou para frente e chegou bem próximo do pescoço do motorista que já ia
virar para trás a fim de receber o dinheiro da corrida quando de relance passou
os olhos no retrovisor e cruzou o olhar com o do outro fixado nele pelo
espelho. Seu sangue gelou na mesma hora.
O homem no
banco de trás tinha os olhos esbranquiçados, não estavam assim minutos atrás,
mas aquilo não era o detalhe mais aterrorizante.
_ Quanto lhe
devo? _ perguntou com a voz ainda mais grossa do que antes e com aquele sotaque
ainda mais visível.
As duas
pessoas paradas num ponto pouco iluminado da esquina saíram das sombras e
caminharam na direção do carro assim que viram o veículo parar. Donizete pensou
que estava tendo algum tipo de alucinação; a mulher era pálida como uma estátua
de mármore, assim como o homem, e, o preto das roupas, dos óculos, dos cabelos
de ambos e do batom dela se contrapunham à palidez mortal deles.
_ Quanto
devo a você, Sr. Donizete._ perguntou novamente o passageiro.
O motorista
estava tão apavorado que nem se deu conta de que o homem o tinha chamado pelo
nome, mesmo sem que ele tivesse revelado durante o trajeto. Só foi perceber
aquilo na manhã seguinte.
Donizete
gaguejou para responder:
_ Quin..ze
re...re..ais. Quinze reais!_ disse finalmente.
Quando o
homem perguntou quanto tinha sido a corrida, Donizete viu os dentes grandes;
caninos, como os de um animal. Pensou todos os tipos de teorias possíveis para
explicar aquilo, mas o coração estava disparado. A confusão aumentava dentro
dele e só uma palavra bombardeava sua mente. Vampiro.
O passageiro
se moveu lá atrás e recostou novamente no banco, em seguida, estendeu a mão
para o motorista no banco da frente com uma nota de cinqüenta reais.
_ Não tenho
menor. Fique com o troco. Você está com muita sorte hoje.
Os outros
dois fora do carro caminhavam olhando a todo o momento para os lados.
Donizete
pegou a nota sem nem olhar para ela, se fosse uma nota de dois reais ele
ficaria satisfeito; tudo o que queria era sair dali imediatamente.
Os outros
alcançaram o táxi. O passageiro recolocou os óculos, abriu a porta e antes de
sair disse:
_ Obrigado e
tenha uma boa vida.
Ele saiu do
automóvel e Donizete pensou que fosse sofrer um ataque do coração, o peito doía
intensamente. Pensou na família, pensou na vida que tinha levado até aquele
momento; tudo tão rápido que pareceu acontecer em um único pensamento.
O passageiro
se juntou aos outros dois; a mulher o abraçou, em seguida olhou para dentro do
carro pelo vidro fechado, retirou os óculos e sorriu deixando visíveis os
mesmos dentes longos e os olhos incandescentes de um azul bruxuleante. Foi a
visão mais insana que o taxista teve na vida.
Donizete
tentou reunir forças para engatar a marcha e sair, mas não conseguiu.
Os dois
homens fora do carro apertaram as mãos como bons conhecidos e depois, eles
três, caminharam rua adentro sem sequer olhar para trás; todos andaram até
desaparecer encobertos pela escuridão do lugar.
A dor no
peito diminuiu devagar e Donizete arrancou com o carro tão rápido quanto
conseguiu; suava frio e sentia os golpes pesados do coração contra o peito como
marteladas internas.
Ficou
aliviado quando saiu daquele lugar e decidiu ainda ali que não trabalharia mais
durante a noite. De repente, foi como se um véu tivesse sido tirado dos olhos
dele, o mundo perdeu um pouco do sentido que tinha antes e uma nova realidade
nasceu emergindo das sombras na mente do taxista. Pensou que fosse enlouquecer.
Parou de
trabalhar nas noites sem explicar os motivos reais para ninguém que conhecia,
mas a última coisa que ele queria na vida era voltar a encontrar qualquer um
daqueles noctívagos e passaria o resto da vida se perguntando quantos deles
andariam livremente pelas noites da cidade.
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