A água fedia tanto que em outros tempos
ele poderia até mesmo vomitar caso simplesmente chegasse perto de um esgoto
como aquele.
Os lixos flutuavam sobre a superfície
escura e espessa das águas que vinham dos encanamentos de esgotos sanitários e
caixas de gordura de muitos pontos da cidade trazendo todo o tipo de detritos;
desde dejetos humanos, passando por lixo doméstico como cascas de frutas,
legumes e verduras; pacotes e caixas de comidas e guloseimas infantis, tais
como biscoitos, e doces variados, até papéis, tecidos, garrafas pet, sacos de
mercado vazios ou cheios de lixo, pedaços de móveis destruídos e como se não
bastasse tudo aquilo, ainda tinha os restos apodrecidos de animais.
Muitas pessoas costumam jogar seus animais
domésticos mortos, devidamente ensacados, como se o saco envolvendo o corpo do
animal fosse algum tipo de substância capaz de dar sumiço ao cadáver. Jogavam seus
bichos em valas ou esgotos; outros eram abandonados nas ruas e com as chuvas e
as enchentes produzidas por elas eram trazidos para os encanamentos e galerias
subterrâneas onde Ciro vivia já há muito tempo.
Ciro se ergueu do meio das águas fétidas como
se fosse um morto retornando à vida, o que em parte era verdade. A galeria de
esgoto estava completamente às escuras, não havia nenhuma réstia de luz que
pudesse penetrar naquele lugar e era por esse motivo que Ciro preferia viver
ali.
A galeria era bem abaixo da rua,
localizada num pondo longe dos bueiros e bocas-de-lobo ou de qualquer tipo de
saída para a superfície, porém o local era constantemente inundado e recebia
todos os restos de tudo que a humanidade poderia produzir na cidade acima.
A escuridão não era um problema para Ciro,
já estava tão acostumado com aquilo que enxergava tão perfeitamente como se o
ambiente estivesse iluminado; seus olhos eram adaptados para as sombras e por
isso ele quase não subia à superfície porque só podia fazer isso durante a
noite e mesmo assim os letreiros luminosos, as luzes dos postes de iluminação,
faróis dos carros e toda e qualquer fonte luminosa o incomodava muitíssimo.
Seus olhos doíam tanto que quase não conseguia mantê-los abertos quando num
ambiente claro por mais tênue que essa claridade fosse; e também por esse
motivo, principalmente, ele ficava dias, semanas, às vezes meses sem sair de
sua toca sombria e úmida. Preferia assim, mas havia somente uma coisa capaz de
fazer com que ele abandonasse seu buraco lúgubre. A fome.
A fome era algo tão violento que por si só
já era o suficiente para lhe roubar a sanidade que ainda tinha restado desde
que passara a viver como uma espécie de demônio, condenado àquele tipo de
existência sem sentido e torturante. Quando Ciro era acometido por aquele
sentimento profano, não tinha escolha a não ser deixar seu buraco apodrecido e
subir à superfície a fim de conseguir aplacar a vontade de ingerir alimento.
Fazia muito tempo que ele já não se considerava mais uma pessoa, sabia que não
era humano e nem se parecia mais com um.
A força da fome o transtornava e a única
saída era solver uma vida por inteiro para que seu espírito e, por que não
dizer, sua carne doente se aquietassem. Ele já estava acostumado, mas detestava
ser dominado por tal animalismo, por isso preferia aguardar o máximo que
pudesse antes de subir para consumir alguém, afinal, era extremamente
complicado achar uma pessoa que estivesse em condição de ser atacada sem deixar
vestígios. Desse modo ele saía apenas quando já começava a sentir os efeitos
iniciais da devastadora fome, mas antes que ela tomasse o controle absoluto.
Ciro nunca soube exatamente como sua vida
tinha decaído até aquele patamar terrível; dez anos antes, quando ele acordou
num bueiro não tinha certeza de como fora parar lá. A única lembrança que ainda
tem de antes daquela noite foi um acidente com seu carro numa noite chuvosa.
Ele lembrava de ter derrapado, perdido a traseira e a direção do veículo, e sem
conseguir recuperar o controle do automóvel foi parar dentro de um canal;
lembra de ter quase se afogado, estava bêbado e drogado; mas foi retirado de
dentro do automóvel por alguém que ele não viu; apenas sentiu ser puxado com
muita violência. Nesse processo fraturou vários ossos, e a dor foi o suficiente
para fazer com que perdesse os sentidos, provavelmente ele não sobrevivesse aos
ferimentos se uma coisa não acontecesse. Uma coisa que ele ignora até hoje em
dia, mas que já não faz assim tanta diferença; aparentemente Ciro morreu dias
depois e o que restou foi uma espécie de simulacro malévolo no lugar.
Ele sentia como se ainda estivesse vivo,
pensava como se ainda estivesse vivo, dormia como se ainda estivesse vivo e até
sonhava como um vivo, mas sabia que já não estava totalmente vivo. Ciro não conseguia
chorar, nem uma gota sequer, já tinha tentado, mas aparentemente era
impossível.
Ao acordar algum tempo depois do acidente
ele já não se sentia o mesmo; seu pescoço estava dilacerado, assim como seus
pulsos; havia marcas e cortes por todo o corpo, mas não havia sangue algum
sendo vertido ou nas proximidades; sua pele antes morena e rígida estava
esbranquiçada e flácida ao extremo; seus cabelos negros e volumosos resumiam-se
a pequenos tufos desgrenhados, tinha perdido quase toda a vasta cabeleira; e seus
olhos castanhos estavam sem cílios e sem coloração alguma, mas aquilo não era
tudo. O pior ainda estava por vir.
Ele pensou que fosse morrer, mas ao invés
disso o que ocorreu foi uma bizarra metamorfose que o tornou uma espécie de
morto-vivo. Certa vez ao subir à superfície para conseguir alimento Ciro vagou
pelas ruas durante a madrugada em busca de um homem ou uma mulher que pudesse
atacar, mas antes que isso acontecesse ele se viu refletido numa janela de um
automóvel e a visão foi tão aterradora; o monstro no qual havia se transformado
era tão infernal que a única reação foi uma explosão de ira que culminou com a
destruição de todos os vidros e espelhos do carro. Naquele momento Ciro decidiu
nunca mais se olhar novamente em qualquer vidro ou espelho que fosse, parte por
medo de ver que a cada vez estava se transformando numa besta mais e mais
hedionda e parte porque aquilo desencadeava nele uma fúria tão terrível quanto
a fome que o tentava controlar.
Ciro se tornou um ser tão horripilante que
uma simples olhada para sua imagem seria o suficiente para inutilizar uma
pessoa comum. Foi nesse momento que ele se lembrou de um livro que tinha lido
quando ainda era uma pessoa comum em seus áureos anos de vida na superfície,
antes dos vícios, antes das loucuras e orgias, antes do acidente na noite
chuvosa que foi o crepúsculo de sua vida. O livro escrito pelo britânico
Herbert George Wells chama-se “A máquina do tempo”.
No livro, uma raça de seres monstruosos,
repulsivos e canibais habitava os subterrâneos num futuro distante, se
alimentando de pessoas, exatamente como Ciro estava condenado a fazer.
Atualmente ele era apenas uma sombra, uma
forma decadente do que antes fora um ser humano; uma prova de que o caos
poderia reivindicar vidas alheias aleatoriamente para fazer o que bem
entendesse; um lembrete de que um mal insano caminhava sobre a terra recrutando
e arrebatando almas para suas fileiras ou para seus bestiários particulares.
Seu corpo agora era coberto de feridas não
curadas ou cicatrizadas, seus dentes agora eram presas enormes e pontudas, o
hálito era tão terrível quanto o fedor do esgoto no qual vivia, suas unhas eram
prolongações afiadas de dedos alongados e esqueléticos, e, tudo aquilo ainda
podia piorar.
Ele estava sentindo aquela pontada de dor
que caso não fosse saciada explodiria na fome compulsiva que era cada vez mais
arrebatadora; não podia permitir que isso acontecesse, pois era muito difícil
retomar o controle depois. Da última vez tinha demorado um dia inteiro.
Ergueu-se no meio do esgoto e caminhou
pela escuridão por entre o emaranhado de galerias e túneis abaixo das ruas,
como se fosse apenas um vulto errante; tomou o cuidado de evitar túneis abaixo
de ruas muito movimentadas onde as tampas de bueiro pudessem ser facilmente
abertas. Ele já sabia como se movimentar abaixo da cidade, evitava várias
galerias e cortava caminho por outras, nos quase dez anos se movendo sob a as
ruas e avenidas, atacando pessoas desavisadas ele tinha criado uma espécie de
mapa mental de toda a cidade e conseguia se localizar tão bem como se tivesse
uma bússola.
Quando se aproximou da rua conseguiu ouvir
os sons característicos do trânsito lá encima, os túneis mais largos tinham
ficado para trás, ele rastejava por manilhas apinhadas de sujeira, lodo e lama;
sabia muito bem aonde aquele caminho ia levar. Sua respiração estava ofegante e
por fim achou o lugar de saída.
Uma tampa de ferro batido em forma
arredondada, enferrujada por baixo e que tinha sobre ela a inscrição “águas
pluviais” na parte de cima; ela era a única numa pequena rua sem saída e sem
iluminação também, parte das luzes dos postes tinham sido destruídas por
vândalos e a outra parte simplesmente não funcionava, descaso. Pouco importava,
a única coisa certa era que aquele descaso custaria o sangue de alguém.
Ciro levantou a tampa sem fazer esforço,
ignorando o peso que necessitava de dois homens para removê-la, olhou ao redor,
não havia ninguém. Se arrastou para fora do bueiro como uma anomalia que a
terra estivesse regurgitando de suas entranhas, um fantasma que logo
desapareceria e com ele uma vida inocente, se é que isso existia.
Não demoraria muito para que alguém
desavisado cruzasse o seu caminho e se arrependesse para sempre; Ciro saiu em
busca da vítima daquela noite; ficou em posição de alerta e ataque. Ao longe
vinha alguém. Pobre pessoa, a vítima jamais poderia imaginar que naquela noite
teria um encontro marcado com a pior criatura que podia existir.
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