O homem
caminhava lentamente, trajava um longo casaco pesado de couro e um chapéu
surrado que lhe serviam tanto para proteger do sol quanto para impedir que
alguém olhasse diretamente para seu rosto parcialmente deformado. Trazia na mão
um saco de couro repleto de coisas importantes, ao menos para ele.
Todos os
dias, logo que o sol surgia no céu ele acordava, caminhava pelos salões escuros
da antiga catedral que agora chamava de lar, para verificar se não havia nada
errado. Checava se todas as janelas e portas estavam devidamente trancadas, via
se todos os objetos de valor de seu mestre estavam nos devidos lugares e
alimentava os animais acorrentados. Após isso fazia sua ronda pelo lado de fora
do lugar, a catedral estava abandonada a mais de um século, ficava em uma localidade
ligeiramente distante de algumas cidades rurais e ainda mais distante de alguns
centros urbanos, mas não tão distante que ele não pudesse visitá-los de vez em
quando à procura de alguma diversão carnal.
Embora estivesse fazendo isso cada vez menos atualmente porque ele detestava o
barulho continuo e infernal do trânsito, da mídia, das pessoas e de toda aquela
tecnologia espalhada em enorme telas por toda parte, mesmo durante
as noites praticamente não havia silêncio e isso tornava muito mais difícil para
ele caminhar em meio a toda aquela turbulência moderna.
Durante sua
ronda em torno da catedral, aproveitava para ver se não havia vestígios de
possíveis invasores, embora soubesse muito bem que nem mesmo durante o dia sob
a proteção da luz do sol, ninguém seria louco o suficiente de cruzar os pesados
portões de ferro que, juntamente com os grandes muros de pedras, protegiam o
lugar; embora seu mestre tivesse deixado bem claro que alguma pessoa poderia querer
explorar o prédio antigo e se fosse esse o caso tal invasor ou invasores não deveria sair de
lá com vida.
Enquanto
caminhava lentamente, ele olhava a decadência que todo aquele complexo
demonstrava, as grandes janelas não possuíam mais nenhum vitral representando
anjos e santos que um dia já teve, mas apenas as grades de ferro frio que
deixavam parte da luminosidade solar passar para o lado de dentro, as paredes
da catedral permaneciam obscurecidas depois da última grande caçada onde todo o
lugar foi incendiado por um grupo de caçadores, inclusive com inocentes dentro,
em uma atitude desesperada apenas para tentar matar um monstro que havia se
apossado como dono do local e atacava os moradores mais próximos bebendo o seu
sangue e transformando-os em escravos deformados; todos morreram na noite
daquela invasão, menos a criatura, até mesmo os caçadores que, segundo os relatos
de alguns moradores mais antigos das cidadezinhas próximas, subestimaram a
força sobrenatural que estava em ação ali; o monstro teria invocado poderes
antigos e sombrios para lacrar as grandes e pesadas portas de ferro trabalhado
prendendo a todos dentro da catedral para que o fogo fizesse seu trabalho.
Geralmente no imaginário da maioria das pessoas é comum pensar que o fogo seria
capaz de dar fim à existência de todos os bebedores de sangue noctívagos, mas o
que a grande maioria nem mesmo desconfia é que algumas espécies não possuem tal
fraqueza, na verdade, algumas espécies não possuem nem mesmo o sol como
fraqueza, embora prefiram se mover pelas sombras da noite, como o mais famoso
bebedor de sangue do folclore mundial que certa vez se encontrou com um
escritor chamado Bran Stoker.
Quando
aceitou o trabalho para ser o guardador da catedral, supostamente para que o pouco dos objetos
de valor que havia restado depois da destruição provocada pelas chamas não
fosse roubado, tal história sobre a caçada, o monstro e o grande incêndio já
era contada por mais de oitenta anos, ele aceitou o trabalho porque precisava
do dinheiro e nunca podia imaginar que na verdade quem o estava contratando também estava sob a influência da criatura; ele nunca imaginou que realmente existisse uma criatura
hedionda vivendo ali, ou melhor, vivendo não, habitando ali. O monstro usou
alguma espécie de sedução mental para aprisionar sua mente, em seguida bebeu
seu sangue e o obrigou a beber o dele, isso o transformou em seu escravo; era como uma doença mental e física que o estava gradativamente deformado.
A partir
daquele ponto sua maldição teve início, todos os dias ele precisava se
alimentar de um pouco do sangue do seu mestre, do contrário perdia a sanidade e
se tornava um ser animalesco que saia pelas redondezas atacando pessoas e
animais indiscriminadamente, havia tentado fugir por duas vezes e foi
exatamente isso o que aconteceu, portanto para o bem dos moradores das outras
cidades ele permanecia servindo pacificamente ao monstro da catedral;
diariamente ao nascer do sol enquanto a criatura dormia em um caixão escondido
nas partes mais profundas do lugar, ele cuidava de tudo durante todo o dia até
o por do sol, dedicava-se a fazer todo aquele procedimento de vigilância;
quando sua ronda terminava, às vezes ele caminhava até a cidadezinha mais
próxima e conseguia algum alimento para os animais aprisionados; geralmente conseguia tudo o que precisava nos cemitérios.
Naquele dia
ela já havia feito tudo e estava retornando da cidade com alguma comida para os
animais dentro de uma grande bolsa de couro, mas não era só isso, foi a
primeira vez em anos que ele foi até a sua antiga cidade, e sorrateiramente
visitou sua antiga casa onde havia deixado esposa e dois filhos para trás por
medo de lhes fazer mal; de longe conseguiu espreitar e ver que seus filhos
agora também já tinham filhos, sua esposa parecia contente comandando a família
e todo o luto e tristeza por seu desaparecimento estava sendo superado com a passagem
do tempo. A alegria de vê-los bem foi logo substituída pela amargura de ter de
voltar para a catedral sombria, mas agora aquela era a sua vida.
Ao retornar
ele caminhou pela frente repleta de mato alto, havia corvos por toda parte que
voaram ao perceber sua presença, parecia haver uma nuvem sombria pairando sobre
a catedral no fim daquela tarde e ele sabia que tal fato se devia a consciência
de seu mestre que mesmo de dentro de seu sono monitorava tudo o que acontecia
nas proximidades do local, inclusive possuindo mentalmente os corvos e usando-os como sentinelas aladas.
Entrou na catedral
trancou a grande e pesada porta de ferro trabalhada e desceu para os níveis
mais baixos da estrutura, retirou o chapéu e o grande casaco que vestia,
ascendeu algumas velas para iluminar o caminho, passou pelo salão onde seu
mestre descansava dentro do caixão e finalmente chegou aonde os animais estavam
presos, homens e mulheres; uma dezena deles, que também foram amaldiçoados como
ele tempos atrás e agora nem mesmo pareciam ter sido humanos um dia. Aparentemente,
não se alimentar do sangue do mestre vampiro diariamente o tornaria uma espécie
de animal também, porém, se alimentar do sangue apenas atrasava aquele processo
abominável de mutação, os antigos chamavam aquela metamorfose hedionda de maldição do carniçal e em outros lugares do mundo essas criaturas eram conhecidas como Ghouls. O mesmo aconteceria com ele, mais cedo ou mais tarde,
certamente se tornaria uma criatura sem qualquer humanidade como aqueles presos
nas grades das profundezas da catedral; era apenas uma questão de tempo.
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